Placenta,
Esfera,
Nave.
Cordão encarnado
Ligado ao coração central.
Desde esse berço,
Protegida e presa,
De volta ao útero infinito do céu.
Escrita espontânea
Óh grande mãe, com milhares de braços: o braço que faz nascer, o braço que acolhe, o braço que esmaga, o braço que mata. Vida e morte em uma mesma mãe cósmica: Shiva, Bodisatva. Ao centro, o olho que tudo vê. Eu, ligada a ti, em teu útero, esôfago, canal de passagem, coração central, gerador do mundo. Desde esse berço, protegida e presa, de volta ao útero do céu. Eu escolho os braços da mãe que me impulsionam para o renascimento maior, mais forte, dentro da placenta-esfera-nave, pronta a ser devolvida ao cosmo, ao infinito. Cordão umbilical encarnado, nutridor de mim para o meu novo Eu. Do nascimento biológico ao renascimento escolhido, buscado, traçado de volta ao útero do infinito.
Diálogo entre duas subpersonalidades:
Super Marcia é a que se acha a fodona; Marcinha é a boa menina
Super Marcia - Eu não estou a fim de encontrar a minha mãe.
Marcinha - Por que você não tem vontade de vê-la?
Super Marcia – Por que ela fez uma grande sacanagem com o meu irmao
Marcinha – Mas ela não fez nada especificamente contra você.
Super Marcia – É verdade. Ela não fez nada comigo, mas fez com o meu irmão, que é como um filho para mim. Eu acho que eu sempre estive nesse papel de mãe da minha mãe, de mãe do meu irmão mais novo, acho que só não entrei no papel de mãe do meu irmão mais velho, pois a minha mãe só é mãe dele. Ela fez muitas sacanagens a vida inteira.
Marcinha – Eu me sinto culpada se não procurá-la, eu me sinto na obrigação de ligar para ela, de ver o lado infantil dela, de entendê-la. Na verdade eu gostaria de aceitá-la exatamente do jeito que ela é.
Super Marcia – Eu não consigo aceitá-la com seu egoísmo, somente pensando nela mesma o tempo todo. Quero dar um tempo. Não sinto raiva e não sinto tristeza, sinto aversão. Não sei se estou me protegendo, se estou fugindo ou se estou me libertando dessa culpa.
Marcinha – O mundo me diz que eu devo ser paciente, as pessoas acham que eu sou boa, compassiva, que eu ajudo todo mundo, então eu me sinto na obrigação de aceitá-la, de não brigar, de não cobrar. É uma quebra danada de paradigma para mim não entrar explicitamente nesse papel de cuidadora.
Super Marcia – Se eu falar com ela, tendo a entrar no papel de julgadora. Entro no papel da mãe severa e saio quicando, destruo, meto o pau, abro as feridas, mostro o quanto ela é incompetente, cresço e me fortaleço para subjulgá-la.
Marcinha – E eu, quando vejo as fragilidades dela, quando ela vem chorando ou quando percebo realmente o quanto ela é solitária, entro no papel na cuidadora, da que sabe tudo, no papel da que é capaz de resolver todos os problemas, que é superior, espiritual, elevada... a bem resolvida da família.
Super Marcia – Como mãe ela sempre foi sacana, egoísta, autocentrada.
Marcinha – Como mãe ela sempre foi frágil, infantil, incapaz
Super Marcia – Eu me sinto em uma encruzilhada. Não sei se o meu caminho de crescimento é me libertar dela e deixar que ela viva do seu jeito, sem julgá-la, mas também sem me obrigar a conviver com ela.
Marcinha – Eu me sinto em uma encruzilhada. Não sei se o meu caminho de crescimento é aceitá-la do jeito que ela é e conviver com ela sem querer que seja melhor do que é, sem me forçar a ser boazinha.
Tudo junto – Quero encontrar esse lugar de equilíbrio onde o que ela faz não me afete, o que ela diz não me incomode. Quero me libertar dela completamente, assim como na imagem do Renascimento. Quero vê-la como minha mãe biológica, mas não vincular minhas expectativas a ninguém mais que eu mesma. Enquanto eu esperar que ela seja diferente do que é, todas as vezes que ela for ela mesma, eu ficarei decepcionada e entrarei no conflito interno entre julgá-la e condená-la ou tentar me aproximar para ser a fada madrinha e botar panos quentes, levar os livros de autoajuda, mandar mensagens subliminares de mestres budistas sobre o amor, sobre a compreensão, puro blá, blá, blá. A aceitação é uma estrada longa, mais longa do que eu gostaria. Acho que preciso sair tanto do papel da super Marcia, a que sabe tudo, a superior, a juíza severa, a que exige conversas profundas, a que queria que a mãe fosse uma sacerdotisa pica das galáxias, mas também preciso sair do papel da boa moça, da autoimagem idealizada de entender tudo, de querer cuidar dela e curá-la. Talvez aceitar que eu sou todas essas coisas, deixar todas essas subpersonalidades terem voz até que elas não precisem mais ficar gritando entre si e deixar rolar. Não precisar ser a protagonista em todos os rolos da família, o elo perdido, aquela que vai colar o vaso que quebrou. O vaso está completamente quebrado. Eu preciso aceitar que é assim mesmo. Talvez eu esteja entrando num lugar novo, de não ação, de espera e de observação. Quem sabe não fazer nada? Quem sabe sair desse lugar de grande importância. Quem sabe quebrar a ilusão de ser imprescindível? E mesmo assim não morrer...poder ficar bem sem todos esses papeis, simplificar, aceitar a minha normalidade.