Menu
NEKYA OU A LUTA CONTRA O HOMEM MAU (Mito – descida ao mundo subterrâneo para quebrar o poder da morte)
12 de outubro de 2018

Eu odeio você.
Eu desejo você.
Você é instinto, besta fera.
Você é ingenuidade.
Natureza imoral.
Medo da morte humana.
Eu incorporo a vulnerabilidade da experiência,
Acesso a massa confusa da dor.

Escrita espontânea
O homem mau avança sobre a criança. A criança avança contra o homem mau.  Eu tenho muita raiva desse homem mau, perverso.  Eu quero pular em cima dele e lutar, eu quero denunciá-lo, quero que ele seja detido e punido.  Eu quero que as pessoas saibam que ele é um violador, que ele não é digno de confiança.  Quero que ele seja detido para que ele não faça mal a outras pessoas. Eu quero acabar com o mal, eu não aceito o mal. A existência do mal em si: a mentira, as ardilezas, a hipocrisia, o não enfrentamento da verdade.  Eu tenho raiva de mim mesma por ter me calado, por ter aceitado, por não ter gritado, por não ter mordido, por não ter chutado, por não ter corrido.  Eu tenho raiva da minha mãe por sua insistência em querer se manter na ignorância.  Eu tenho raiva da minha mãe por votar no Bolsonaro, mesmo eu lhe pedindo para não votar, mesmo explicando a ela o que ele representa, dizendo com todas as letras o quanto faz recrudescer a minha ferida e o quanto seria importante que ela fizesse esse ato por mim, mesmo pedindo para ela se colocar no meu lugar e ouvindo dela que ela não consegue se colocar no meu lugar.  Sinto-me fraca ao gritar para o mundo a minha dor e, mais uma vez, não ser ouvida. Mais uma vez perceber a brutalidade ser minimizada, justificada, acolhida e desejada.  Luto contra o homem mau.  Quem é o homem mau? Meu avô? Deus? Quem é o homem mau em mim? Que parte do meu masculino é também má e perversa? Capaz de se dessensibilizar para aguentar os trancos da vida.  Qual parte de mim também se brutaliza e vira as costas para a luz, por medo da luz, por medo de ser devorada pela grande luz.

Diálogo entre a criança e o homem mau
A criança: Eu odeio você

O homem mau: Eu desejo você

A criança: Você é perverso, você é doente, você é louco, você é a personificação do mal, você é falso e mentiroso, você finge ser meu avô, mas não é.  Você não é meu avô.

O homem mau: Eu desejo você, eu desejo sua mãe, eu desejo sua avó, eu desejo sua prima, eu desejo todas as mulheres, eu quero possuir todas as mulheres.

A criança: Eu tenho nojo de você, das suas ardilezas, tenho nojo da sua capacidade de fazer o mal e do seu egoísmo.  Você é um animal, uma besta-fera, sem sentimentos, somente movido pelos seus desejos.  Eu queria ter tido um avô de verdade, alguma referência masculina de amor, carinho e proteção.  Porque teve que ser assim?

O homem mau: Eu não sei nada sobre porquês.  Eu sou puro instinto.  Eu sou o animal em você.  Eu não tenho medo, nem culpa, nem piedade, eu não penso, eu não julgo, nem a mim, nem a ninguém, eu não tenho moral.

A criança: Você preservou a minha mãe e violou a mim. Eu tenho mais raiva de você por isso.  Eu tenho raiva de mim por ter sido dócil, por ter sido silenciosa, por ter ficado no canto, por ter aceitado passivamente a sua perversidade.

O homem mau: você não tinha outra opção

A criança: Tinha sim, eu podia ter gritado em alto e bom som, podia ter te denunciado, podia ter rompido o medo, podia ter falado para a minha vó que você era um monstro, podia ter te denunciado para o meu pai.  O meu pai sabia que você era um pedófilo.  Ele te odiava, mas eu nunca falei para ele, pois eu quis preservá-lo da dor de saber.  Eu só falei para a minha mãe, mas ela não fez nada e continuou a conviver com você como se nada tivesse acontecido.  Ela preferiu acreditar que aquela barbaridade não era verdade.  Agora percebo que devia ter falado com o meu pai.  Talvez esse tenha sido o meu erro.  Eu também encobri o monstro, assim como minha avó e minha mãe.

O homem mau: Você não me denunciou para o seu pai porque você também não tinha intimidade com o seu pai.  Ele também não estava presente.

A criança: É verdade, eu era só uma criança, não sabia de nada.  Fiz o melhor que pude, sobrevivi. Queria transcender você, passar por cima de você, derrota-lo, assim como Davi fez com Golias, queria devorá-lo antropofagicamente, assim como faz a jibóia com suas presas.  Quero abrir minha grande boca, minha mandíbula desproporcional e mágica e ir te devorando lentamente, deixando que minhas enzimas internas te dissolvam e transformem em força para mim, em matéria prima, em adubo, em energia.  Quero sentir-te dentro de mim, desfalecido, morto, finalmente morto, em decomposição, não te vendo mais como o humano que eu gostaria que você tivesse sido, mas como o animal que você.  Aceitá-lo como animal. Quero ver a ti como natureza e aceitar a mim também como natureza e nos perceber como partes desse ciclo de nascimento e morte, transformação.

O homem mau: Eu sou mesmo esse animal imoral.  Não há maldade em mim.  Há apenas a pulsação de vida simples e instintiva.  Eu vivo assim como vivem os porcos, as formigas, os touros, os crocodilos e os tubarões.

A criança: Acontece que eu também sei ser serpente, onça, crocodilo e tubarão.  Eu também sei ser animal.  Eu sou esse animal mágico, capaz de transmutações, eu sei voar e rastejar, eu mergulho nas profundezas e atinjo os mais altos cumes.  Agora nos aproximamos nesse mundo de natureza livre e cruel.  Agora nós vamos lutar.  Agora pode vir, pode se aproximar, que eu estou pronta.

O homem mau: Eu te desejo.

A criança: eu também te desejo.

O homem mau: Eu desejo te possuir.

A criança: eu desejo te matar.

O homem mau: Eu te desejo tanto que eu me arrisco para conseguir o que eu quero.  Eu vou te levar para o rio.

A criança: Eu estou pronta para ir para o rio.  Eu sou uma serpente aquática. Eu sou uma jiboia, eu sou forte.  Pode se aproximar de mim.

O homem mau: Eu estou bem próximo a você.  Eu quero te tocar.

A criança: Eu me enrosco em você, eu te estrangulo, em me enrosco em seu pescoço e você para de respirar.  Eu me enrosco em todo o seu corpo, que aos poucos vai ficando flácido e sem vida.  Eu abro a minha grande boca e vou te devorando lentamente, com prazer, você ainda se mexe um pouco, mas a cada mexida eu aperto o abraço até que você paralisa.  Agora eu já tenho sua cabeça dentro de mim, engulo o pescoço e faço um esforço para quebrar seus ossos do tronco, engulo seus ombros, suas vísceras, seus pulmões, seu coração.  Tudo é somente músculo, matéria-prima.  Não sinto medo, não sinto remorso, somente sigo meus instintos de devorá-lo porque você é minha presa e eu tenho fome, faz parte da minha essência de serpente devorar as presas.  Continuo a avançar e me apropriar do seu corpo.  Minhas enzimas internas começam a atuar sobre a sua pele, sobre os seus músculos, suas veias, e, aos poucos, seu corpo vai se transformando em uma matéria amorfa e nutritiva.  Agora eu devoro seu abdome, seus intestinos, todas as suas vísceras internas são minhas e eu me fortaleço.  Você morre e eu perdoo a sua desumanidade.  Só consigo aceitá-lo desumano quando eu mesma aceito a minha desumanidade, quando eu me coloco nesse mesmo lugar de natureza absoluta.  Engulo seu pênis flácido, suas ancas, suas pernas, seus joelhos e, finalmente, os seus pés. Não somos humanos, somos animais em luta pela sobrevivência.  Ninguém te julgou.  Ninguém vai me julgar.  Eu não vou me culpar por te matar, por te devorar e, antropofagicamente, absorver sua força, seu desejo, seu mal. Eu me sinto calma, saciada, plena. Lambo os beiços.  Preciso descansar.  Toda jiboia, após devorar sua presa, entra em estado de quase morte, hibernação.  Toda a minha energia agora será direcionada para digerir o seu corpo.  Acho que agora começo a me aproximar de você.


BEM VINDO (A) AO CURSO DE PINTURA ESPONTÂNEA
Esqueceu a chave?